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Saúde Digital: um longo caminho a percorrer

Saúde Digital: um longo caminho a percorrer

Apesar dos fortes desenvolvimentos tecnológicos na área, a digitalização da saúde em Portugal continua fortemente limitada pelos sistemas e processos subjacentes

Como em muitas outras áreas, a transformação digital está a proporcionar oportunidades únicas na área da saúde, seja na prestação de cuidados ou na eficiência dos processos. O grande número de dados gerados pelos sistemas de saúde, sejam estes decorrentes de processos pré-existentes ou obtidos por novas tecnologias de diagnóstico e monitorização, apresentam um enorme potencial para a otimização de processos, suporte da tomada de decisão e melhoria dos serviços prestados aos utentes. Apesar de não ter originado esta tendência, a pandemia de COVID-19 tornou particularmente evidente a necessidade de repensar os modelos tradicionais de serviços de saúde, de atendimento médico-paciente presencial e de resposta à procura, cada vez mais dinâmica e complexa.

Parte disto é a tendência cada vez mais premente e o foco crescente na prevenção da doença, otimização da qualidade de vida e acompanhamento contínuo do utente.

“Hoje, o doente tem também a expectativa que as instituições disponibilizem soluções capazes de monitorizar diferentes sinais vitais e que possa de forma bidirecional comunicar o seu estado de satisfação em relação a um tratamento ou terapêutica associada”, refere Hugo Marques, Head of Digital & Automation da Siemens Healthineers Portugal, destacando o uso de Digital Twins construídos com base nos dados de saúde de cada indivíduo para, em conjunto com profissionais de saúde, antecipar problemas, personalizar a prevenção, diagnosticar doenças e até mesmo prever o resultado de várias abordagens de tratamento.

“Utilizando o Digital Twin, sempre com o consentimento da pessoa de forma individual, clinicamente poderemos antecipar problemas de saúde crónicos como hipertensão ou diabetes e criar planos de prevenção personalizados, potenciando uma revolução nos cuidados preventivos”, diz.

Luís Teodoro, Administrador da SoftFinança, dá também o exemplo do portal Nossa Farmácia, um centro de informação que possibilita a agregação de métricas de saúde de cada utente provenientes de testes – como sejam de colesterol, tensão arterial, acompanhamento do peso, entre outros – realizados em farmácias aderentes ao serviço, bem como informação sobre condições existentes, medicação e indicações médicas. Assim, cada utente dispõe de um conjunto de métricas de saúde que poderá partilhar com o seu médico e, inclusivamente, receber alertas para tomar a medicação e alarmes quando as métricas agregadas apontam para a necessidade de acompanhamento médico. Esta informação, refere, está ainda circunscrita às farmácias aderentes – bem como às apps de algumas clínicas privadas – mas à medida que o processo avançar poderá evoluir para clínicas de diagnóstico, centros de saúde e hospitais.

 

Dr. Bruno Freitas, Presidente do Conselho Diretivo do Instituto de Administração de Saúde da Madeira

“Portugal, neste momento, apresenta capacidade técnica e empresas tecnológicas capazes de responder aos novos desafios da transformação digital na saúde em Portugal e nas ilhas”, refere Dr. Bruno Freitas, Presidente do Conselho Diretivo do Instituto de Administração de Saúde da Madeira. “No entanto, ter capacidade não significa fazer acontecer, e existem ainda algumas incertezas”.

Interoperabilidade é indispensável

A pedra basilar da transformação digital, principalmente em ambientes complexos como a saúde, é a interoperabilidade entre sistemas. Qualquer iniciativa de transformação digital depende do livre fluxo de dados entre diferentes sistemas, frequentemente envolvendo diferentes stakeholders, e a total eliminação de silos de informação.

“A realidade é que, nos últimos 15 anos, assistimos a uma crescente digitalização de serviços, e no entanto em muitos casos avançamos simplesmente com uma digitalização dos processos em papel”, refere Hugo Marques. “Hoje, precisamos de dados discretos, estruturados para que os possamos transformar em informação clínica acionável que nos permita desenvolver algoritmos, protocolos clínicos que cruzem informação proveniente de várias fontes de dados, áreas clínicas e não clínicas. A sensibilização dos diferentes stakeholders para a utilização de standards de interoperabilidade será crucial para o desenvolvimento de soluções e ecossistemas que irão suportar o desenvolvimento de uma prestação de cuidados do futuro”.

Hugo Marques, Head of Digital & Automation da Siemens Healthineers Portugal

 

Isto significa que, mesmo existindo capacidades técnicas e acesso às tecnologias mais avançadas, a existência de sistemas legacy desatualizados, falta de interoperabilidade entre os diferentes stakeholders, silos de informação e processos altamente burocráticos impossibilitará que se alcancem os verdadeiros objetivos da transformação digital. Mesmo existindo casos de sucesso isolados, como em certos hospitais privados, enquanto todo o sistema de saúde não for interoperável não será possível alcançar sucesso.

“A tecnologia é um meio, não um fim. O fim é garantir melhores níveis de satisfação dos clientes, dos profissionais e dos restantes stakeholders”, refere o autor e economista José Mendes Ribeiro. “É necessário replicar na saúde os casos de sucesso que já tivemos nos impostos e na banca. Para isto são necessários investimentos. É preciso ter uma cloud unificada onde todos os agentes – médicos, hospitais, clínicas de análise, farmácias, seguradoras – se liguem, de forma a agilizar processos que de outro modo estão sujeitos a altos níveis de burocracia”.

Para tal, defende, é necessário olhar para os percursos dos utentes – que ainda são pouco eficientes. Imaginemos o percurso de um utente que, por determinada queixa de saúde, procura assistência médica. Começa por marcar consulta no seu centro de saúde, o que já o irá sujeitar a um longo período de espera. Uma vez realizada a consulta, o médico irá então prescrever análises num laboratório da rede convencionada. O paciente terá de marcar ele próprio as análises, levantar os resultados, e, mais uma vez, marcar e esperar pela consulta no centro de saúde. Com base nas análises, o médico poderá determinar que o paciente terá de consultar um médico de especialidade no hospital de referência – marcação mais uma vez realizada pelo utente. Assim, poderão passar meses para que possa simplesmente obter um diagnóstico e começar tratamento, período durante o qual a sua condição se possa ter agravado.

 


“Portugal apresenta capacidade técnica e empresas tecnológicas capazes de responder aos novos desafios da transformação digital na saúde em Portugal e nas ilhas”

Dr. Bruno Freitas, Presidente do Conselho Diretivo do Instituto de Administração de Saúde da Madeira


 

“No sistema de saúde público, as coisas não estão bem e não estarão até que se tome partido da transformação digital para conseguir partilhar a informação entre profissionais, instituições e pessoas”, alerta José Mendes Ribeiro. “A prioridade das prioridades, a espinha dorsal de qualquer serviço de saúde, é a existência de um registo de saúde eletrónico, que nos representa dentro do sistema da mesma forma que o NIF nos representa perante o fisco e através do qual todos os processos podem ser agilizados entre os diferentes agentes”.

Até serem construídas estas fundações, acrescenta, não é possível tomar partido de todas as tecnologias atualmente disponíveis para o setor porque estas não poderão ser utilizadas em todo o seu potencial. Qualquer solução, do simples agendamento à mais complexa solução de inteligência artificial, depende da existência de sistemas robustos, simplificados e interoperáveis.

No sistema de saúde público, em particular, Luís Teodoro, Administrador da SoftFinança, aponta para uma abordagem excessivamente fechada que impede o aproveitamento das capacidades desenvolvidas pela indústria.

 

Luís Teodoro, Administrador da SoftFinança

“O nosso sistema de saúde tem muitos pontos fortes, mas no que se refere ao IT tem ainda uma visão muito redutora. Em vez de trabalhar com parceiros especialistas e implementar soluções de terceiros com um universo de clientes disperso que permite ir buscar boas práticas uns dos outros, Portugal enveredou pelo autodesenvolvimento de soluções, limitadas pela capacidade que os recursos do Estado têm para desenvolver e implementar”, indica.

Consequentemente, torna-se difícil o futuro desenvolvimento e integração de soluções externas sobre estes sistemas, limitando a interoperabilidade entre o público e o privado.

“Nos últimos anos, confrontados com as necessidades de partilha de informação desta matéria, e reduzida elasticidade e custo que esta estratégia têm, começaram-se a fazer aberturas, apesar de que de forma protecionista”, diz o responsável.

José Mendes Ribeiro, Autor e Economista

 

“Temos de trazer estes parceiros tecnológicos a bordo, porque estão muito mais preparados, dispõem de informação mais sistematizada e aprendizagens desenvolvidas em casos de sucesso, podendo assim ajudar aa acelerar o processo de digitalização”, concorda José Mendes Ribeiro

Cibersegurança

Na madrugada de 26 de abril, o Hospital Garcia da Orta sofreu um ataque de ransomware. Apesar de ainda se desconhecer a extensão do ataque e consequência para os dados dos utentes, sabe-se que houveram repercussões no funcionamento da unidade, condicionando consultas, cirurgias e a realização de exames e análises clínicas.

Este é apenas um de muitos casos do recente boom de cibercrime – mas também é, juntamente com o ataque à Vodafone, ilustrativo do impacto que têm as falhas de segurança nos serviços críticos. Quando o próprio funcionamento de uma operação – desde uma simples loja até a um hospital – depende de sistemas informáticos, o comprometimento dos mesmos não só implica a violação da privacidade como também a continuidade dos serviços, podendo neste caso pôr vidas em risco.

 

“É necessário replicar na saúde os casos de sucesso que já tivemos nos impostos e na banca. Para isto são necessários investimentos. É preciso ter uma cloud unificada onde todos os agentes – médicos, hospitais, clínicas de análise, farmácias, seguradoras – se liguem, de forma a agilizar processos que de outro modo estão sujeitos a altos níveis de burocracia.”


José Mendes Ribeiro

Isto constitui um dos grandes obstáculos à modernização dos serviços – a interoperabilidade entre sistemas forma as fundações da digitalização da saúde, e isto só poderá ocorrer se os sistemas disporem de segurança e robustez suficientes para tal nível de abertura ao exterior.

Para além disto, a cibersegurança não só é necessária para a salvaguarda da privacidade dos utentes e do funcionamento dos sistemas, como também uma garantia necessária para a própria adesão voluntária dos utentes aos serviços. Luís Teodoro relata que, no desenvolvimento do portal Nossa Farmácia, “muitos utentes apresentaram relutância em aderir a este tipo de serviço, e isto deveu-se em grande parte ao medo da quebra de privacidade”. Como tal, explica, parte do desenvolvimento da aplicação partiu da total anonimização dos dados, o que impede a identificação ou contacto por parte da farmácia exceto no caso em que as métricas medidas requeiram a emissão de um alerta – e mesmo nesta situação a farmácia não tem acesso direto aos dados do cliente.

“A utilização de novas tecnologias e serviços de saúde mais digitais irão formar um novo perfil de profissional de saúde, não só no conhecimento e domínio dos novos conteúdos, mas também na gestão e segurança dos dados clínicos dos utentes, bem como, um novo perfil de utente, mais informado e responsabilizado pela sua informação clínica”, conclui o Dr. Bruno Freitas.

Luís Goes Pinheiro, Presidente dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde

 

De olhos no futuro

Apesar do panorama atual ser desafiante, a pandemia evidenciou a necessidade de sistemas mais eficientes no setor da saúde, traduzindo-se no desenvolvimento de novas plataformas, canais de acesso, e ferramentas. Luís Goes Pinheiro, Presidente dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, detalha a estratégia de modernização da saúde contemplada no Plano Nacional de Recuperação e Resiliência, com vista a acelerar e alavancar esta evolução num curto espaço de tempo, em grande parte através de esforços de centralização e integração tão evidentemente necessários.

Neste âmbito, explica, a transformação digital da saúde assenta em quatro pilares: Infraestruturas; Sistemas de Informação para os Profissionais; Sistemas de Informação para o Cidadão; e Dados em Saúde.

A área das Infraestruturas estará focada na centralização, robustecimento e modernização da rede de dados, bem como a modernização dos equipamentos de trabalho dos profissionais.

A centralização e uniformização dos sistemas – que atualmente totalizam mais de oitenta, com grande diversidade entre si – será o princípio orientador da reforma dos Sistemas de Informação para os Profissionais. “As ferramentas do futuro têm de garantir a máxima mobilidade dos profissionais, beneficiando da experiência com ferramentas ágeis como a Prescrição Eletrónica Médica, a maximização da telessaúde, designadamente com a generalização da teleconsulta, com a plataforma Live, e a segurança”, refere Luís Goes Pinheiro. “É também fundamental o investimento em sistemas de apoio à decisão que acelerem e automatizem os procedimentos e reduzam o erro”.

 

A centralização e uniformização dos sistemas – que atualmente totalizam mais de oitenta, com grande diversidade entre si – será o princípio orientador da reforma dos Sistemas de Informação para os Profissionais

Também no que toca aos cidadãos, este processo passa também pela centralização, com o desenvolvimento de um modelo omnicanal de acesso no qual, independentemente do meio de contacto escolhido, “este viverá uma experiência com elevada qualidade, uniforme e integrada”. Enquanto no canal presencial o foco está em aumentar o número de Balcões SNS 24, no canal digital,a prioridade é unificar e simplificar os serviços, consolidados no Portal SNS 24 e na app SNS 24.

“Igualmente relevante para os cidadãos será o alargamento das ferramentas de telessaúde, em especial as de telemonitorização dos doentes crónicos e, a título de exemplo, temos a aplicação Telemonit SNS 24, recentemente lançada na ULS-Matosinhos e no Centro Hospitalar Universitário do Algarve”, refere.

Já na área dos dados, o foco está em obter “mais e melhores dados, com o propósito de os reutilizarmos mais e melhor também”, passando pela centralização do armazenamento dos dados sobre meios complementares de diagnóstico e terapêutica através da app SNS 24 ou do Portal SNS 24. Neste âmbito, a SPMS relata um caso já existente na desmaterialização dos exames de diagnóstico, em cujo âmbito já foram emitidas mais de um milhão e meio de requisições de forma desmaterializada desde o dia 1 de abril.

“Mas neste processo de transição digital não partimos do zero”, conclui Luís Goes Pinheiro. “Este é um trabalho que tem vindo a ser desenvolvido e Portugal tem já um nível de implementação de Sistemas Digitais de Saúde considerável, sendo a PEM, Prescrição Eletrónica de Medicamentos, um bom exemplo disso”.

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