O maior apagão da história da Europa expôs a fragilidade da nova eletricidade: renovável, sim, mas potencialmente vulnerável em situações específicas. Faltou inércia, faltou sincronismo, faltou referência — e o sistema colapsou.
A 28 de abril de 2025, a Península Ibérica mergulhou numa escuridão inesperada. Em segundos, desapareceu da rede elétrica mais de metade da energia gerada em Espanha, num apagão que rapidamente se alastrou a Portugal e ao sul de França, afetando mais de 60 milhões de pessoas. Não houve tempestade, nem sabotagem, nem falha estrutural aparente. O que falhou foi a sincronia invisível que mantém viva a rede elétrica moderna. O excesso de produção renovável, aliado a tecnologia incapaz de estabilizar a frequência, expôs uma fragilidade estrutural da nova geração de energia limpa. Pela primeira vez, vimos o que acontece quando o futuro se impõe mais depressa do que a infraestrutura pode acompanhar. O maior apagão de sempre na Europa ocorreu perto do meio-dia solar no sudeste da Península Ibérica. O que começou como uma flutuação de frequência tornou-se, em segundos, numa falência total do sistema elétrico ibérico. Às 12h33 (hora local), mais de metade da geração elétrica de Espanha desapareceu da rede como por magia — ou melhor, por incapacidade de manter a magia invisível da sincronia elétrica. O operador espanhol Red Eléctrica descreveu o fenómeno como um “zero elétrico”: uma perda total de referência, de fase, de tensão e de controlo. Uma rede que colapsa assim não se “repara” — reinicia-se. E foi isso que foi preciso fazer, com operações delicadas de black start, a partir de geradores autónomos e centrais isoladas. Este não foi um incidente aleatório. Foi, muito provavelmente, o primeiro choque frontal entre a nova eletricidade — limpa, renovável, digital — e uma infraestrutura que ainda pensa como no século XX. Naquele momento, 55% de toda a energia em Espanha vinha do sol, com produção solar a atingir os 17,8 GW. Mas essa energia, que em teoria seria sinónimo de sustentabilidade e independência, revelou-se o ponto fraco do sistema. O problema não estava na origem da eletricidade, mas na forma como ela estava a ser integrada na rede. Grande parte da geração renovável atual, como a solar e a eólica, é ligada à rede através de inversores eletrónicos grid-following. Estes dispositivos convertem corrente contínua em corrente alternada e sincronizam-se com a frequência da rede — os 50 Hz que mantêm todo o sistema em harmonia. Mas estes inversores não geram essa frequência, nem têm força para a sustentar. Limitam-se a “seguir” o sinal que recebem da rede. Quando esse sinal desaparece, ou se torna instável, os inversores desorientam-se. E, para se protegerem, desligam-se. Foi o que provávelmente aconteceu. O sistema começou a mostrar pequenas variações de frequência e tensão, talvez provocadas por um desequilíbrio momentâneo entre oferta e procura. Os inversores grid-following, distribuídos por centenas de instalações solares e eólicas, deixaram de conseguir manter a mesma fase. Ou ficaram fora de fase ou fora de frequência. Ao operar com ligeiras variações entre si, começaram a criar frequências de batimento (beat frequencies) — interferências elétricas que se sobrepõem e reforçam mutuamente. Este efeito causa oscilações na voltagem e torna impossível manter uma rede elétrica coerente. Sem um sinal de referência estável, os inversores desligaram-se em cascata. E com eles, apagou-se a Península. Num sistema clássico, este tipo de perturbação seria absorvido pela inércia das máquinas rotativas — grandes geradores síncronos em centrais térmicas, nucleares e hidroelétricas. Estes equipamentos, por terem massas físicas em rotação, fornecem inércia mecânica ao sistema. É essa inércia que impede que uma oscilação de milissegundos se transforme numa catástrofe de horas. Importa recordar que essas centrais, que em Portugal e Espanha continuam a ter peso considerável, oferecem esta estabilidade — mas naquele dia, muitas estavam paradas ou a operar a carga mínima, para dar prioridade à produção solar. A rede ficou sem amortecedores. A resposta a este dilema já existe — mas ainda não foi adotada em larga escala. Trata-se dos inversores grid-forming. Diferentemente dos grid-following, estes inversores não seguem a frequência da rede: criam-na. São capazes de gerar uma referência de frequência própria e manter a tensão estável, mesmo que não exista uma rede previamente formada. Em termos funcionais, são os equivalentes digitais de um gerador síncrono — e podem até fornecer inércia sintética, ou seja, respostas rápidas e programadas a variações na carga ou na geração. Esta nova geração de inversores está a ser testada em países como a Alemanha, Estados Unidos e Austrália. O laboratório norte-americano NREL demonstrou, com sucesso, que é possível manter redes 100% renováveis estáveis se forem utilizadas estas tecnologias. Mas a transição não é automática. Para integrar grid-forming inverters, é preciso mudar regras de ligação à rede, reconfigurar sistemas de controlo e, sobretudo, fazer investimentos significativos na modernização da infraestrutura elétrica. Em Portugal e Espanha, a esmagadora maioria das instalações solares utiliza grid-following, por questões de custo e maturidade do mercado. É um atraso silencioso, mas potencialmente perigoso. O apagão de abril não foi apenas uma falha técnica. Foi um aviso. A eletricidade está a mudar — tornou-se mais limpa, mais descentralizada, mais digital. Mas para que essa eletricidade seja também segura e resiliente, a rede tem de evoluir. Não basta ter painéis no telhado. É preciso garantir que, quando o sol brilhar, a rede aguenta. Nota: Este é um conteúdo de autor, com base em análise técnica e interpretação pública dos acontecimentos. |